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Eu nunca imaginei que uma passada rápida de turista no Museo Casa Natal de Cervantes poderia mudar tanto a minha vida. A experiência foi imersiva, não apenas na vida de Cervantes, mas na minha também, porque eu conheci uma pessoa que me ajudou a entender os sonhos de Don Quixote e de como isso poderia refletir em nossas próprias ações. “Diga-me com que tu sonhas, que eu te direis quem es”. Essa pessoa me disse que os moinhos de vento das histórias de Dom Quixote eram reais e todos lutamos diariamente com esses terríveis gigantes. Foi uma dura realidade, pois eu percebi que estava apanhando há muito tempo, pelo fato de meus gigantes ficarem cada vez maiores, incrivelmente na mesma velocidade que meu medo também ia crescendo.
Depois do museu, saímos e passamos a noite conversando sobre o futuro e ele me contando suas aventuras de bicicleta pela Europa, que já datavam três meses, fiquei curioso e surpreso de como ele tinha conseguido fazer tudo aquilo, para mim era difícil pegar uma semana de férias!
Meu amigo, quase um Don Quixote, quase um cavaleiro, partiu na manhã seguinte, dizendo que não podia ficar mais tempo, pois já tinha planejado ir para a próxima cidade e ficar na casa de pessoas que tinha conhecido pelo caminho e pela internet. “Viver dessa forma, tem seus benefícios e sacrifícios, porém, sacrifícios existem em todas as vidas, mas às vezes os benefícios não são suficientes para nos prender. Eu troquei o conforto pelo desconhecido”. Disse ele, antes de partir.
Um desejo cresceu dentro de mim, de não ser mais como Sancho Pança, como eu sou (era) e muito de nós ainda somos – uma figura que representa os padrões da sociedade e como tudo deve ser do jeito que já é sem nem sobrar espaço para nossas vontades! Hoje em dia, com a facilidade que temos para viver aonde a gente quiser, de buscar o que sonhamos, ou apenas ir… sem motivo algum, de encontrar um caminho (se é que a vida precisa de um).
Este é Lucas, que trocou seu cavalo por uma bicicleta e abaixo, um breve resumo do que ele já passou em 3 meses de viagem e 5300km cavalgados, ops, pedalados! E estas são suas palavras:
Estava sentado do lado de fora de um mini mercado na cidade de “L’Ospitale de L’Infante” na região da Catalunha, sul da Espanha, após mais um momento “louco solitário tomando caldo no mar e rindo sozinho” (mar lindo por sinal), enquanto devorava meu singelo “almoço”, ali mesmo do lado de fora na calçada da rua ao lado, no melhor estilo “sou cicloviajante, mas sou limpinho”, e enquanto comia eu lia o livro (digital) de Clóvis de Barros Filho intitulado ‘A vida que vale a pena ser vivida’.
Fiquei bem intrigado com um trecho do livro, trecho do qual me fez pensar novamente na viagem que eu vinha fazendo, no porquê dela, às vezes me pegava perguntando nos motivos, motivações, se ela serviria para algo algum dia, muitas destas dúvidas/perguntas surgiram em minha cabeça oriundas das várias perguntas que recebia constantemente de diferentes pessoas quando decidi largar o trabalho e a vida rotineira na Irlanda, para cair na estrada, de bicicleta. Eu mesmo muitas vezes me perguntava, me questionava sobre muita coisa.
Enfim, para o quê serve essa viagem? Existe algum objetivo ou propósito para tal?
O trecho do livro segue assim:
* (…) Sua aula não serve para nada? E orgulhosamente esclareço que não. A aula que vale por ela mesma é aula soberana. Em contrapartida, a que serve para alguma coisa é simplesmente uma aula servil (…).
Curiosamente tentei transpor essa ideia para a minha viagem, e confesso que uma luz acendeu na minha cabeça – Sabe como em desenho animado?! Eram tantas questões sobre a viagem impostas por mim mesmo e por terceiros que depois desse espasmo mental, defini que essa viagem que venho fazendo vale por ela mesma, é soberana, com bônus e ônus, altos e baixos, e que em contrapartida, se fosse uma viagem a trabalho ou qualquer outra coisa do gênero, seria uma viagem servil, com data de saída e chegada, com bilhete de ida e volta, com roteiro e tarefas pré-estipuladas e itinerários pré-estabelecidos.
Não que essas opções não tenham também suas aventuras, mas não era definitivamente o que eu vinha fazendo e essa reflexão me ajudou a esclarecer, mesmo que um pouco, o propósito da minha cicloaventura, se é que havia algum.
Mas só fui ler isso e repensar minha forma de pensar depois de 3 meses estrada e 5300km pedalados por 3 países e inúmeras cidades e vilarejos.
Aventura que se deu início na Irlanda, mais especificamente em Dublin, no dia 10 de Maio de 2016, após mais um dia chuvoso, como de praxe na Irlanda, seguia rumo ao total desconhecido, com medo e coragem e muita, mas muitas incertezas, umas das quais ainda carrego comigo até hoje.
Passando por momentos de extrema felicidade e extrema solidão, muitas vezes ambos sentimentos sentidos no mesmo dia, na mesma hora! Como em El Chorro, região de Andaluzia, Sul da Espanha, lugar lindo entre montanhas e com um lago mais lindo ainda, e ao mesmo tempo que me divertia sozinho, nadando no lago, explorando o local com e sem a bicicleta, eis que do nada me senti solitário, nada depressivo, nem triste, mas faltava algo, sentia falta de pessoas, de amigos, de estranhos, alguém para compartilhar aquele momento, ali, in loco, para rir, reclamar, ou mesmo falar besteiras juntos, foi estranho, aquela potência inicial de estar desbravando um lugar tão lindo e de uma forma tão diferente deu lugar a um sentimento de angústia e solidão. Engraçado né?
Ao contrário de quando estava na França, desfrutei de companhias de desconhecidos que me ofereceram um lugar para dormir pelo couchsurfing, uma se interessou tanto pela minha viagem que 1 mês depois viria pedalar comigo por 14 dias em Portugal, outra já tinha lugar pra mim para quando eu passar pelo sul da França, outro na Inglaterra…
Mas nem tudo são flores (ainda bem), no sul da Espanha cheguei a pegar temperaturas de 42 graus, em um local totalmente desértico! Em Cartagena, após pedalar mais de 100km naquele calor de rachar a cuca, descubro que não havia lugar para passar a noite, campings ou coisa assim, o lugar era muito ruim, cidade árida, não havia muitas árvores ou montanhas ou qualquer lugar bom para montar acampamento. Era tudo visível, cheguei a pedir para desconhecidos para deixarem eu acampar no quintal que seja, mas nada, o máximo que recebi foi “olha, tem uma praia mais pra frente, você pode acampar lá…hum, onde fica? Fica a uns 20km daqui, o quê? 20km? Nesse estado que estou? Deus!”. Moral da história, dormi num barranco não muito longe de onde estava.
São coisas assim que acontecem por optar pelo soberano, pelo “deixa acontecer”, planejo o momento e não a viagem. E como eu já tinha isso em mente desde o início, não me estressava muito e sempre levei muito bem a situação, pois sabia que não era pra sempre.
Portugal, por enquanto, têm sido o lugar que menos “problemas tive”, terreno na sua maioria plano, sem chuvas ou calor intenso e falava a mesma língua. Também onde mais me senti como um turista do que um aventureiro, e onde tive a companhia da amiga francesa que conheci no começo da minha viagem e que me acompanhou pedalando de Porto até Lisboa e mais no sul a companhia de um inglês por 4 dias, onde vimos Portugal conquistar sua primeira Eurocopa, muita festa, e desbravamos lindas praias da costa de Algarve.
Já a Espanha vem se mostrando a mais desafiadora, tanto mentalmente quanto fisicamente, muitas montanhas e um calor infernal! Mas de beleza ímpar!
Na França pedalei do norte, descendo por toda costa oeste até Saint Jean Pied de Port, onde comecei o Camino de Santiago francês e ainda sem passagem pelo sul e foi o país melhor preparado para o ciclismo que havia passado até então.
E claro, fora a peculiaridade de cada país, são lugares muito bonitos e com muita história pra contar.
Entre acampamentos selvagens, como a 1300 metros de altura em pleno Pirineus, ou como dormir alojado num mosteiro de mais de 500 anos durante o Camino de Santiago – famoso por ter alojado grandes peregrinos ao longo da história – ou mesmo acampando numa linda praia deserta na costa oeste portuguesa. E por quê não tirar dias “reais” de descanso (uma cama confortável), ficando em hostel como o de Sevilha, onde tirei uns 3 dias para conhecer bem aquela linda cidade!
Quem sou hoje? Talvez ainda seja muito cedo para este tipo de questão, mas o que aprendi desde então, não só com essa aventura que venho passando e que ainda está longe de um fim, mas também por muitos outros fatores que aconteceram nesses últimos anos. Quanta mudança eu sentia em mim, situações como exaustão física e mesmo assim encontrar força para continuar, ficar na rua sem ter onde dormir e ainda assim estar bem, tranquilo, ter a solidão ao lado e saber lidar com ela sem enlouquecer. – Claro que a Europa por ela mesma ajuda, pois tem muita estrutura e tal, não em todo lugar, mas ainda assim totalmente possível, mas se coisas assim acontecesse comigo anos atrás em qualquer lugar do mundo, eu ficaria puto e estressado facilmente. Hoje tiro de letra muitas dessas situações, até ao ponto de ligar o foda-se e deixar ser, meio perigoso, mas muitas vezes útil.
Talvez eu deva esse meu autoconhecimento aos meus momentos solitários, de reflexão, esses momentos me fizeram analisar meus limites e opções, no pensar em “porque faço o que faço, porquê?” O que me motiva acordar às 5h30 da manhã para evitar o terrível calor que fazia e mesmo depois de pedalar 100km e quase derretendo bebendo água quente (praticamente chá) e ainda ter forças para desafiar aquelas montanhas e serras da Espanha? Era a crença do meu esforço, da perfectabilidade do caráter, daquele neologismo que Russeau criou, perfectabilidade do caráter, de que eu posso e devo melhorar-me como um grande projeto e que isso me torna mais livre, que poucas coisas libertam tanto como o conhecimento e autoconhecimento, do aforismo grego do “conhece-te a si mesmo”.
Talvez seja isso que me move, essa crença do meu esforço, e só meu, em saber que por um instante pensava em desistir de cruzar e subir a montanha e no outro instante já havia cruzado. Mágica?
Tudo começa a fazer sentido desde então. Novas experiências. Novos encontros. Velhos encontros. Horizontes sempre cambiantes. Bônus e ônus. Não existe vida sempre feliz, viagem sempre feliz, momentos sempre felizes, isso é coisa de gente brega.
Dentre estes horizontes sempre cambiantes, há sim, na sua maioria, muita felicidade, de formas e jeitos diferentes e também maravilhosas experiências, mas há também muita solidão e incertezas, das quais me ajudam a crescer e saber que diante de mim sempre haverá opções e escolhas a serem feitas, e quais e como escolher só a experiência irá me ajudar, saber que apesar dos erros, do cansaço físico e mental, estou orgulhoso de mim e do que já fiz e percorri, mesmo em momentos de solidão, como o de agora que vos escrevo, me sinto feliz e realizado e no caminho certo para meu florescimento pessoal.
Relato: Lucas Tadeu Marcatti.
Acompanhe essa viagem também pelo Instagram @lucasmarcatti1881
Fotos: Acervo pessoal Lucas Tadeu Marcai
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